Troca de dentes em cães: Aliviando a coceira na gengiva
Se você tem um filhote em casa neste momento, é muito provável que seus móveis, sapatos e até suas mãos estejam sofrendo as consequências de uma boca inquieta. A fase de troca de dentes é um marco fisiológico inevitável e extremamente desconfortável para o animal, gerando uma necessidade biológica intensa de mastigação. Não se trata de desobediência ou de um comportamento destrutivo gratuito, mas sim de uma resposta fisiológica à inflamação gengival causada pela erupção dos novos dentes. Entender esse processo é o primeiro passo para preservar a integridade da sua casa e, principalmente, garantir o bem-estar do seu companheiro canino.
Como veterinário, vejo diariamente tutores exaustos tentando disciplinar filhotes que simplesmente não conseguem parar de morder. A verdade é que a coceira na gengiva durante a erupção dentária pode ser enlouquecedora para o cão, comparável ao desconforto que bebês humanos sentem. O animal busca alívio na pressão mecânica e na temperatura dos objetos, e cabe a nós direcionar essa necessidade para os itens corretos. Se não oferecermos alternativas viáveis, o filhote encontrará as suas próprias, que geralmente são o pé da mesa ou o controle remoto da televisão.
Neste guia completo, vamos mergulhar fundo na fisiologia da dentição canina, saindo do básico e explorando estratégias profissionais para gerenciar essa fase. Você aprenderá a identificar os sinais sutis de dor, a escolher os mordedores anatomicamente seguros e a diferenciar um comportamento normal de problemas que exigem intervenção cirúrgica. Prepare-se para transformar esse período turbulento em uma oportunidade de educação e fortalecimento do vínculo com seu pet.
Entendendo o cronograma da dentição canina
A fase dos dentes de leite[2][3][4][5]
A jornada dentária do seu cão começa muito antes de você perceber as primeiras mordidas fortes. Os filhotes nascem completamente banguelas, pois sua única necessidade alimentar nas primeiras semanas é a amamentação, que não requer dentes e, de fato, seria prejudicada por eles. A erupção dos dentes decíduos, popularmente conhecidos como dentes de leite, inicia-se geralmente entre a terceira e a quarta semana de vida. São dentes afiados como agulhas, projetados para iniciar o processo de desmame e permitir que o filhote comece a experimentar alimentos pastosos e sólidos.
Nesta etapa inicial, o filhote terá 28 dentes temporários, compostos por incisivos, caninos e pré-molares. É interessante notar que os filhotes não possuem molares nessa fase, pois não precisam triturar alimentos fibrosos ou ossos duros. A estrutura desses dentes é mais frágil e as raízes são longas e finas, mas suficientes para causar pequenos arranhões na pele humana durante as brincadeiras. É comum que você nem perceba quando esses primeiros dentes nascem, pois o processo é rápido e menos doloroso do que a troca definitiva que virá a seguir.
O cuidado nesta fase envolve principalmente a observação. Embora seja raro ter problemas na erupção dos dentes de leite, é o momento ideal para acostumar o animal com a manipulação da boca. Você deve começar a levantar os lábios do filhote gentilmente, tocar nas gengivas e criar uma associação positiva com o toque na região oral. Isso não apenas facilita a avaliação veterinária futura, mas também prepara o terreno para a escovação dentária, que será fundamental para a saúde sistêmica do cão adulto.
O período de transição
O verdadeiro desafio começa por volta do terceiro ou quarto mês de vida, quando se inicia a substituição dos dentes decíduos pelos permanentes. Esse processo ocorre porque o germe do dente permanente, que está localizado na gengiva logo abaixo do dente de leite, começa a crescer e a pressionar a raiz do dente temporário. Essa pressão estimula a reabsorção da raiz do dente de leite, fazendo com que ele perca sustentação, fique mole e eventualmente caia. É um processo biológico fascinante, mas que gera inflamação local, dor e a famosa coceira que motiva as mordidas.
A ordem de troca geralmente segue um padrão previsível, começando pelos incisivos centrais (os dentes da frente), seguidos pelos pré-molares e caninos. Os incisivos costumam cair tão rápido que muitos tutores nem encontram os dentes, pois o cão acaba engolindo-os junto com a comida ou durante o sono. Não se preocupe se isso acontecer, pois a estrutura do dente de leite é composta basicamente de cálcio e será digerida sem causar danos ao trato gastrointestinal do animal. O período mais crítico costuma ser entre o quarto e o quinto mês, quando múltiplos dentes estão em movimento simultâneo.
Durante essa transição, a boca do seu cão se torna um canteiro de obras. A gengiva pode ficar edemaciada, vermelha e sensível ao toque. É nesta janela de tempo que a destruição de objetos atinge o pico. O tutor precisa ter paciência redobrada e vigilância constante. Entender que o cão não morde por maldade, mas por necessidade fisiológica de aliviar uma inflamação, muda completamente a forma como você lida com a situação. A punição física ou verbal excessiva nessa fase é contraproducente e pode gerar ansiedade.
A dentição definitiva completa
Por volta do sexto ou sétimo mês, a maioria dos cães já deve ter completado a troca, ostentando agora uma arcada dentária definitiva com 42 dentes. Diferente dos humanos, os cães possuem uma dentição adaptada para apreensão e rasgadura de presas, além de trituração. A boca adulta é composta por incisivos, caninos robustos, pré-molares e, agora sim, os molares, que são dentes grandes e planos localizados no fundo da boca, essenciais para quebrar alimentos duros.
A consolidação da dentição permanente marca o fim da fase de “coceira” intensa, mas não o fim da necessidade de roer. O comportamento de mastigação continua sendo natural para a espécie canina por toda a vida, servindo como limpeza mecânica dos dentes e alívio de estresse. No entanto, a urgência e a frequência das mordidas tendem a diminuir drasticamente após os sete meses. Se o seu cão continua destruindo a casa com a mesma intensidade após essa idade, o problema provavelmente deixou de ser físico e passou a ser comportamental.
É crucial que, ao final desse processo, você agende uma consulta veterinária para conferir se a oclusão (o encaixe da mordida) está correta. Uma dentição definitiva mal posicionada pode causar traumas crônicos na gengiva, desgaste prematuro do esmalte e até dores articulares na mandíbula. O acompanhamento profissional nesse marco de seis a sete meses garante que qualquer correção ortodôntica necessária seja planejada antes que os danos se tornem irreversíveis.
Sinais claros de que a troca começou
Mudanças de comportamento e irritabilidade
Você notará que a troca de dentes começou muito antes de ver um dente no chão. O primeiro sinal é quase sempre comportamental. Um filhote que era relativamente calmo pode começar a apresentar episódios de irritabilidade, ganidos sem motivo aparente ou uma agitação incomum. Eles podem acordar no meio da noite incomodados ou ter dificuldade para tirar os cochilos habituais durante o dia. A dor constante, embora de baixo nível, é estressante e diminui o limiar de tolerância do animal para frustrações.
A “boca nervosa” é o sintoma clássico. O cão começa a testar a textura de tudo o que encontra, buscando superfícies que ofereçam a resistência ideal para coçar a gengiva. Você perceberá que ele pode morder o próprio pote de comida, os pés das cadeiras de metal ou até paredes. Alguns cães desenvolvem o hábito de “abocanhar” o ar ou passar a pata na boca repetidamente, como se tentassem tirar algo que está incomodando entre os dentes.
Essa mudança de comportamento exige empatia. Imagine ter uma coceira que você não consegue coçar com as mãos; é desesperador. O cão usa a boca como ferramenta de interação com o mundo, e quando essa ferramenta está doendo, toda a sua experiência sensorial é afetada. Oferecer carinho e entender que ele está passando por um momento difícil ajuda a manter o vínculo de confiança, evitando que o tutor reaja com agressividade a comportamentos que são apenas sintomas de desconforto.
O hálito característico da troca
Outro indicador infalível da troca de dentes é a alteração no odor da boca do animal. Durante esse processo, ocorre uma inflamação gengival natural, chamada gengivite da erupção. O rompimento do tecido gengival para a saída do dente provoca micro-sangramentos constantes. O sangue, rico em ferro, confere ao hálito um cheiro metálico muito característico, que muitos tutores descrevem como cheiro de “ferrugem” ou “sangue velho”.
Esse odor é completamente normal e esperado, desde que não venha acompanhado de pus ou secreções amareladas. A boca do cão possui uma microbiota rica e a presença de sangue serve como meio de cultura, alterando temporariamente o cheiro. Não tente mascarar esse odor com produtos cosméticos bucais sem orientação, pois a gengiva está sensível e produtos com álcool ou menta forte podem arder e causar dor intensa ao filhote.
Além do cheiro, você poderá encontrar pequenas manchas de sangue nos brinquedos de morder ou na pelagem branca ao redor da boca. Isso pode assustar tutores de primeira viagem, mas geralmente os sangramentos param espontaneamente em poucos minutos. Se o sangramento for contínuo ou excessivo, aí sim devemos investigar distúrbios de coagulação, mas gotas ocasionais no brinquedo de corda são parte do processo natural de esfoliação do dente de leite.
Pequenos sangramentos e dentes perdidos
Encontrar os dentes pela casa é uma caça ao tesouro que nem todos os tutores vencem. Os dentes de leite são muito pequenos e se parecem com grãos de arroz ou pequenas pedras brancas irregulares. Frequentemente, você os encontrará perto do pote de água, na cama do cachorro ou cravados em algum brinquedo de borracha. Ao examinar a boca, você poderá ver “buracos” na gengiva ou dentes que estão visivelmente tortos e moles, prontos para cair.
É importante monitorar esses locais de queda. A gengiva deve cicatrizar rapidamente, fechando o espaço ou permitindo a visualização da ponta do dente permanente logo em seguida. Se você notar que um dente caiu e o local ficou ulcerado, muito inchado ou com coloração arroxeada por muitos dias, pode haver um fragmento de raiz retido ou uma infecção local. A inspeção visual diária, feita com calma e boa iluminação, é a melhor prevenção.
Evite a tentação de arrancar dentes que parecem moles. O processo de reabsorção da raiz deve ser natural. Se você puxar um dente que ainda tem uma conexão radicular forte, poderá causar fratura da raiz (deixando um pedaço dentro da gengiva, o que leva a infecções) ou danificar o germe do dente permanente que está logo abaixo. Deixe que a mastigação de brinquedos apropriados faça o trabalho mecânico de extração no tempo certo.
Estratégias práticas para aliviar o desconforto
O poder da temperatura gelada
A crioterapia, ou uso do frio, é uma das ferramentas mais eficazes e baratas que temos na medicina veterinária para controle de dor inflamatória. O frio promove vasoconstrição, reduzindo o fluxo sanguíneo local, o que diminui o inchaço da gengiva e tem um leve efeito anestésico nas terminações nervosas. Para o filhote com a boca pegando fogo, um objeto gelado é um alívio imediato e celestial.
Você pode criar brinquedos gelados em casa com facilidade. Uma técnica clássica é molhar uma toalha limpa, torcê-la para retirar o excesso de água, enrolá-la em formato de “charuto” e colocá-la no freezer. Quando estiver congelada, ofereça ao cão. A textura do tecido massageia a gengiva enquanto o gelo derrete lentamente, aliviando a dor. Lembre-se sempre de monitorar a brincadeira para garantir que ele não engula pedaços de tecido.
Outra opção excelente é oferecer cubos de gelo, mas com cautela. Alguns cães adoram “caçar” o gelo numa bacia com água. Você também pode congelar caldos naturais de carne ou frango (sem cebola, alho ou sal) em forminhas de gelo ou dentro de brinquedos recheáveis. Isso torna a experiência do gelo muito mais atraente e mantém o cão entretido por longos períodos, focando sua atenção no alívio da dor e não na destruição dos móveis.
Massagem gengival e dedeiras
A ação mecânica de massagem é outra forma poderosa de alívio. Você pode usar uma gaze estéril enrolada no dedo indicador e molhada em água gelada ou chá de camomila (que é calmante e seguro para cães). Esfregue suavemente as gengivas do filhote com movimentos circulares. A maioria dos cães, após superar a estranheza inicial, tende a fechar os olhos e aproveitar o momento, pois a pressão alivia a sensação de coceira interna.
Existem dedeiras de silicone com cerdas macias, vendidas em pet shops, que também cumprem essa função. Além de massagear, elas já servem como introdução ao hábito da escovação. O segredo é não forçar. Comece com sessões curtas de alguns segundos e vá aumentando conforme o animal relaxa. Se ele tentar morder seu dedo com força, interrompa e ofereça um brinquedo, voltando à massagem apenas quando ele estiver mais calmo.
Essa interação direta com a boca do animal fortalece a confiança dele em você. Cães que permitem que seus tutores manipulem suas bocas desde filhotes são pacientes muito melhores na vida adulta. Além disso, ao massagear, você consegue sentir se há dentes nascendo em posições erradas ou se há feridas na mucosa que precisam de atenção veterinária. É um momento de carinho que serve também como check-up de saúde.
Enriquecimento ambiental focado na boca
O tédio exacerba a percepção da dor. Um filhote sem nada para fazer vai focar toda a sua atenção no desconforto da gengiva. O enriquecimento ambiental consiste em criar desafios mentais e físicos que ocupem o cão. Durante a troca de dentes, o foco deve ser o enriquecimento oral e alimentar.
Espalhe a ração do dia em brinquedos dispensadores de comida ou esconda-a em tapetes de faro, em vez de oferecer tudo no pote de uma vez. A atividade de forragear (buscar comida) libera dopamina, um neurotransmissor ligado ao prazer que ajuda a contrapor a sensação de dor. Caixas de papelão limpas (sem grampos ou fitas adesivas) podem ser oferecidas para o cão destruir. O ato de rasgar o papelão satisfaz a necessidade de destruição de forma segura e barata, salvando seus sapatos.
Rodiziar os brinquedos também é fundamental. Se todos os brinquedos ficarem disponíveis o tempo todo, eles perdem a novidade. Mantenha apenas 3 ou 4 disponíveis e troque-os a cada dois dias. Um brinquedo que “sumiu” e reapareceu é muito mais interessante. Isso mantém o interesse do cão nos itens permitidos e diminui a probabilidade de ele procurar novidades proibidas, como o rodapé da sua parede.
O que oferecer para o filhote morder
Brinquedos de nylon e borracha maciça
A escolha do material do mordedor é crítica. Nesta fase, precisamos de materiais que tenham alguma “cedência”, ou seja, que afundem levemente quando o cão morde, mas que não se despedacem. Brinquedos de nylon texturizado são excelentes porque as ranhuras ajudam a coçar a gengiva. Já a borracha maciça é ideal para cães com mordida mais potente, pois oferece resistência sem ser dura como uma pedra.
Evite brinquedos ocos de plástico fino que fazem barulho (squeakers) se o seu cão for um destruidor voraz. Eles podem ser facilmente rasgados e as peças internas de plástico engolidas, causando obstrução intestinal. Prefira marcas renomadas que garantem a atoxicidade do material, pois seu cão vai ingerir micropartículas desse brinquedo ao longo do tempo.
Os mordedores com texturas variadas (bolinhas, espinhos, ondas) são os mais indicados. Cada textura proporciona uma sensação diferente na gengiva, permitindo que o cão escolha qual parte alivia melhor a coceira naquele momento específico. Brinquedos em formato de osso ou “Y” facilitam que o cão segure o objeto com as patas dianteiras, proporcionando um ângulo de mordida melhor para os dentes do fundo.
Mordedores naturais e comestíveis
A tendência atual na veterinária comportamental é o resgate dos mordedores naturais. Itens como cascos de vaca higienizados, chifres de veado ou búfalo e orelhas de boi desidratadas são opções fantásticas. Eles possuem um sabor altamente atrativo que brinquedos de plástico não conseguem imitar. O cheiro e o gosto incentivam o cão a passar horas roendo, o que é ótimo para o gasto de energia mental.
No entanto, é preciso cautela. Ossos naturais crus ou defumados devem ser oferecidos com supervisão. O osso cozido (como o de sobras de churrasco) é expressamente proibido, pois a cocção altera a estrutura do colágeno, fazendo com que o osso lasque em pontas afiadas que podem perfurar o intestino. Já os mordedores naturais desidratados ou crus são mais seguros, pois se desgastam progressivamente sem formar lascas cortantes.
A cenoura crua é um excelente mordedor natural comestível. É barata, saudável, baixa em calorias e, se oferecida gelada, ajuda na inflamação. Apenas monitore as fezes do animal; pedaços de cenoura não digeridos podem aparecer, o que é normal, mas em excesso pode soltar o intestino de alguns filhotes mais sensíveis.
O perigo dos objetos caseiros improvisados
Muitos tutores, na tentativa de economizar, oferecem garrafas PET, pedaços de madeira ou sapatos velhos para o cão. Isso é um erro estratégico perigoso. Primeiro, ao dar um sapato velho, você ensina ao cão que sapatos são brinquedos. Ele não sabe diferenciar o tênis velho do seu sapato de couro novo de grife. Para o cão, a textura e o cheiro são da mesma categoria “item permitido”.
Garrafas PET podem soltar anéis de plástico e a tampa, que são riscos graves de sufocamento. Pedaços de madeira de construção podem conter vernizes tóxicos ou soltar farpas que causam abscessos na gengiva ou perfurações no esôfago. O improviso pode custar caro em cirurgias de emergência.
Invista em itens desenhados para a espécie. O custo de um bom brinquedo é infinitamente menor que o custo de um tratamento veterinário para remover um corpo estranho gástrico. Se quiser improvisar, atenha-se aos itens alimentares (cenoura, maçã sem semente) ou têxteis seguros (cordas de algodão natural), sempre sob supervisão direta.
Quadro Comparativo de Soluções para Mordida:
| Característica | Mordedor de Borracha Recheável (Congelável) | Ossos de Couro (Rawhide) | Pelúcia Comum |
| Segurança | Alta. Difícil de engolir pedaços se o tamanho for correto. | Baixa. Risco de engasgo e bloqueio intestinal quando fica mole. | Média/Baixa. Cães destroem rápido e engolem espuma/olhos. |
| Alívio da Dor | Excelente. Retém o frio e massageia. | Médio. Apenas mecânico, sem efeito térmico. | Baixo. Muito macio, não coça a gengiva eficientemente. |
| Durabilidade | Alta. Dura meses ou anos. | Baixa. Dura horas ou dias. | Baixa. Dura minutos com mordedores fortes. |
| Interesse | Alto (devido ao recheio de comida). | Alto (sabor). | Médio (novidade). |
| Recomendação | Ideal para a fase de troca. | Evitar ou usar com extrema cautela. | Apenas para supervisão/brincadeira conjunta. |
Dentição dupla e problemas comuns
Identificando os dentes de tubarão
A “dentição dupla” ou persistência de dentes decíduos ocorre quando o dente de leite não cai, mas o permanente nasce mesmo assim, geralmente logo atrás ou ao lado dele. Isso cria uma fileira dupla de dentes, lembrando a boca de um tubarão. Ocorre porque a raiz do dente de leite não foi reabsorvida corretamente, mantendo-o ancorado na mandíbula enquanto o permanente busca seu espaço.
Você pode identificar isso facilmente levantando o lábio do cão. Se você vir dois caninos ocupando o mesmo espaço (um mais fino e pontudo, o outro mais grosso e rombo), seu cão tem dentição dupla. Isso é mais comum nos dentes caninos superiores, mas pode acontecer com qualquer dente. O problema não é apenas estético; o dente de leite retido impede que o permanente se posicione corretamente, levando a problemas de mordida (má oclusão).
Além disso, o espaço entre os dois dentes torna-se um depósito de restos de comida e pelos. Como não há vedação gengival perfeita entre eles, a placa bacteriana se acumula rapidamente, levando à doença periodontal precoce, mau hálito e perda óssea antes mesmo de o cão atingir a idade adulta.
Quando a extração cirúrgica é necessária
A regra de ouro na odontologia veterinária é: “dois dentes não podem ocupar o mesmo lugar no espaço”. Se o dente permanente já erupcionou visivelmente e o dente de leite correspondente ainda está firme (não apresenta mobilidade), a extração cirúrgica é indicada. Esperar “ver se cai” pode comprometer o alinhamento da arcada dentária de forma irreversível em questão de semanas.
O procedimento é simples, rápido e requer anestesia geral para segurança do animal, pois as raízes dos dentes de leite que não caíram costumam ser longas e frágeis, podendo quebrar se a extração for feita com o cão acordado (o que seria, além de tudo, doloroso e traumático). Muitas vezes, aproveitamos o momento da castração para realizar a remoção desses dentes persistentes, resolvendo dois problemas com uma única anestesia.
Não tente arrancar um dente firme em casa. Você corre um risco enorme de fraturar o dente, deixando a raiz infeccionar dentro do osso, ou de lesionar o dente permanente novo, danificando seu esmalte que ainda é imaturo. Deixe isso para o cirurgião veterinário.
Impacto na oclusão e mordida futura
Uma mordida correta funciona como uma tesoura: os dentes superiores e inferiores se encaixam perfeitamente sem se tocar traumaticamente. Quando há dentes retidos, eles desviam os dentes permanentes. Um canino inferior desviado para dentro (linguoversão), por exemplo, pode perfurar o céu da boca do cão toda vez que ele fecha a boca, causando dor crônica e fístulas oronasais.
Problemas de oclusão não são apenas “dentes tortos”. Eles afetam a capacidade do cão de comer, de segurar brinquedos e podem gerar dor na articulação temporomandibular (ATM). Raças braquicefálicas (focinho curto) ou de pequeno porte já têm pouco espaço na boca; qualquer dente extra agrava a situação dramaticamente.
A prevenção é o melhor remédio. Identificar a retenção cedo e extrair o dente problemático permite que o dente permanente deslize naturalmente para a posição correta, guiado pela pressão da língua e dos lábios, muitas vezes dispensando o uso de aparelhos ortodônticos veterinários no futuro.
A psicologia da mordida no filhote
Diferenciando coceira de ansiedade
Nem toda mordida é por causa do dente nascendo. Filhotes também mordem por tédio, excesso de energia, ansiedade de separação ou simplesmente porque descobriram que morder o dono gera uma reação (atenção), mesmo que seja uma bronca. A mordida da troca de dentes é focada, persistente e geralmente direcionada a objetos duros. O cão rói com os dentes do fundo, fechando os olhos, buscando alívio.
Já a mordida de atenção ou ansiedade costuma ser mais agitada, acompanhada de latidos, pulos e direcionada a partes do corpo do dono que estão em movimento (mãos, calcanhares). Se o cão rói o pé da mesa quando você sai de casa, pode ser ansiedade de separação. Se ele rói o osso de nylon calmamente ao seu lado, é alívio da dentição. Saber essa diferença ajuda a escolher se você precisa de um adestrador comportamental ou apenas de mais brinquedos.
Observar o contexto é a chave. Um filhote que teve bastante exercício físico e mental e ainda assim não para de roer coisas, provavelmente está com dor. Um filhote que não passeou e está mordendo tudo, provavelmente está entediado e com energia acumulada. Tratar o tédio com brinquedos de dentição ajuda, mas não resolve a raiz do problema, que é a falta de atividade.
O treino de inibição de mordida
A fase de troca de dentes é o momento crucial para ensinar a inibição de mordida, ou seja, ensinar ao cão a controlar a força da mandíbula. Filhotes aprendem isso com os irmãos da ninhada: se mordem forte demais, o irmão grita e para a brincadeira. Com humanos, a lógica deve ser a mesma.
Se o filhote morder sua mão forte demais, dê um grito agudo curto (“Ai!”) e interrompa a interação imediatamente. Vire de costas ou saia do ambiente por 30 segundos. O cão aprende que “dentes na pele humana com força = fim da diversão”. Não é necessário bater ou gritar com raiva; a punição negativa (retirada da atenção) é muito mais eficaz para o aprendizado.
Esse treino é vital porque um cão adulto que não aprendeu a medir a força da boca pode causar acidentes graves, mesmo sem intenção agressiva. A boca é a mão do cachorro, e ele precisa aprender a ser “suave” com seres humanos, independentemente da coceira que esteja sentindo na gengiva.
Redirecionamento positivo de comportamento
Em vez de apenas dizer “não” o tempo todo, diga ao cão o que ele pode fazer. O redirecionamento é a técnica de substituir o item proibido pelo permitido. Se você pega o cão roendo o chinelo, não tire apenas o chinelo. Tire o chinelo e coloque imediatamente o mordedor de borracha recheado na boca dele, elogiando quando ele começar a roer o brinquedo.
Você deve tornar os itens permitidos mais valiosos que os proibidos. Se o chinelo tem cheiro do dono (agradável para o cão) e o brinquedo é um pedaço de plástico sem graça, o chinelo ganha. Por isso os brinquedos recheáveis ou naturais são tão importantes: eles competem em valor com a mobília.
Seja consistente. Todos na casa devem seguir a mesma regra. Se você deixa morder o chinelo velho, mas a esposa briga quando ele morde o novo, o cão ficará confuso e ansioso. A clareza nas regras diminui o estresse do animal e acelera o aprendizado, tornando a fase de troca de dentes menos caótica para a família.
Nutrição e cuidados veterinários na troca
A importância do cálcio e minerais
A formação dos dentes exige uma quantidade significativa de cálcio e fósforo. No entanto, o erro mais comum é suplementar cálcio por conta própria. Rações Super Premium para filhotes já são perfeitamente balanceadas. O excesso de cálcio é tão perigoso quanto a falta, podendo causar deformidades ósseas graves e problemas articulares, especialmente em raças grandes.
Apenas certifique-se de que o filhote está comendo uma ração de alta qualidade adequada para o seu porte e idade. A desnutrição nessa fase pode levar a dentes com esmalte fraco (hipoplasia de esmalte), que serão mais propensos a cáries e quebras na vida adulta. Se você opta por Alimentação Natural, o acompanhamento de um zootecnista ou nutrólogo veterinário é obrigatório para garantir que o balanço mineral esteja correto para a troca dentária.
A textura do alimento também importa. Alguns filhotes sentem dor ao mastigar grãos de ração muito duros durante o pico da inflamação. Se o cão recusar comida, tente umedecer a ração com água morna ou oferecer patês específicos para filhotes por alguns dias. Isso garante que ele continue nutrido mesmo quando a boca está dolorida.
A primeira escovação e o condicionamento
Você não precisa escovar os dentes de leite com a intenção de remover tártaro, pois eles vão cair. O objetivo agora é o condicionamento. Se você esperar o cão ter tártaro aos 3 anos de idade para começar a escovar, será uma batalha perdida. Comece agora.
Use uma dedeira ou escova macia e pasta de dente veterinária (nunca humana, pois o flúor é tóxico se engolido). Faça sessões curtas, associando a escova a petiscos e elogios. Se o cão associar a escovação a um momento positivo desde bebê, você terá um aliado na prevenção da doença periodontal pelo resto da vida dele.
A doença periodontal é a doença mais comum em cães, afetando 80% dos animais acima de 3 anos. Ela afeta o coração, rins e fígado. Começar a higiene na fase de troca de dentes é o melhor investimento em saúde preventiva que você pode fazer.
Visitas preventivas ao consultório
O check-up pediátrico aos 6 meses é fundamental. Muitos tutores param de ir ao veterinário quando acabam as vacinas, por volta dos 4 meses, e só voltam um ano depois. Esse hiato é perigoso para a saúde bucal.
Nessa visita intermediária, o veterinário verificará se todos os dentes de leite caíram, se os permanentes estão erupcionando na posição correta e se a mordida está funcional. Problemas detectados agora podem ser corrigidos com intervenções simples. Problemas detectados na idade adulta podem exigir cirurgias complexas e extrações de dentes saudáveis que foram danificados pelo posicionamento errado.
Encare a troca de dentes não como um incômodo passageiro, mas como uma fase crítica do desenvolvimento do seu cão. Com paciência, as ferramentas certas (brinquedos, gelo e manejo) e orientação profissional, você e seu filhote passarão por isso com a mobília intacta e a saúde em dia. Lembre-se: cada mordida no brinquedo certo é um passo a menos em direção a problemas futuros. Cuide do sorriso do seu melhor amigo desde o início.


