Temperamento do SRD: Como saber se será bravo ou dócil?
Temperamento do SRD: Como saber se será bravo ou dócil?

Temperamento do SRD: Como saber se será bravo ou dócil?

Temperamento do SRD: Como saber se será bravo ou dócil?

Você provavelmente já ouviu aquela velha história de que adotar um cão Sem Raça Definida é como jogar na loteria. As pessoas adoram dizer que você nunca sabe o que vai sair daquela bolinha de pelos que cabe na palma da mão. Como veterinário com anos de clínica e centenas de pacientes atendidos, posso afirmar que essa visão é parcialmente verdadeira mas ignora a ciência por trás do comportamento animal. A verdade é que não precisamos de uma bola de cristal para prever tendências de comportamento. Precisamos de observação técnica e compreensão biológica.

A ansiedade de saber se aquele filhote vai crescer e se tornar um cão de guarda implacável ou um companheiro que pede barriga para qualquer estranho é legítima. Você quer segurança para sua família e bem-estar para o animal. A boa notícia é que o temperamento não surge do nada aos dois anos de idade. Ele deixa rastros, pistas e sinais desde as primeiras semanas de vida. Entender esses sinais é o que separa uma adoção consciente de uma aposta cega.

Neste artigo vamos mergulhar fundo na etologia canina e na medicina veterinária comportamental. Vamos deixar de lado os “achismos” de parque e olhar para o que realmente forma a personalidade do seu futuro melhor amigo. Prepare-se para olhar para o seu SRD com outros olhos e entender que o “bravo” ou “dócil” é uma construção complexa que começa muito antes de você levar o pet para casa.

A genética e a loteria biológica do vira-lata

Quando falamos de cães de raça pura temos uma previsibilidade comportamental selecionada por gerações. Um Border Collie vai querer pastorear e um Labrador provavelmente vai gostar de água. No SRD essa seleção artificial não existe de forma direcionada o que torna o pool genético uma mistura fascinante. Isso não significa que não existam regras genéticas atuando ali. A ancestralidade do seu cão carrega fragmentos de instintos de caça, guarda ou pastoreio que podem se manifestar de forma diluída ou intensa. Não podemos ignorar que a genética é a base do hardware do cão e ela dita os limites do que é possível em termos de reação instintiva.

A parte mais interessante que vemos na ciência atual é sobre a epigenética e o estresse na gestação. Se a mãe desse filhote passou a gravidez nas ruas passando fome, medo ou sofrendo agressões, o sistema dela foi inundado de cortisol. Esse hormônio do estresse atravessa a barreira placentária e “programa” o cérebro dos fetos para nascerem em um estado de alerta máximo. Muitas vezes recebo no consultório filhotes que nunca sofreram maus-tratos diretos mas que são extremamente medrosos e reativos. Isso acontece porque biologicamente eles foram preparados para sobreviver em um ambiente hostil antes mesmo de respirarem pela primeira vez.

A herdabilidade do medo e da agressividade é um ponto que você precisa considerar com seriedade. Estudos indicam que traços como timidez e medo excessivo possuem um componente genético forte. Se tiver a oportunidade de conhecer os pais do filhote ou pelo menos a mãe observe atentamente. Uma mãe que não permite aproximação que rosna por medo ou que se esconde no fundo do canil tem grandes chances de passar essa predisposição aos filhotes. Não é uma sentença de condenação mas é um fator de risco que exigirá de você um manejo muito mais cuidadoso e técnico para reverter ou controlar.

Leitura corporal e sinais precoces no filhote

Aprender a ler um cão é como aprender um novo idioma onde não existem palavras mas sim posturas e micro expressões. Quando você for escolher ou avaliar seu filhote de SRD esqueça aquele que vem correndo pular no seu colo imediatamente. Embora pareça que ele “te escolheu”, esse comportamento pode indicar uma ousadia excessiva ou falta de inibição de mordida que no futuro pode se traduzir em dominância ou agitação incontrolável. Da mesma forma o filhote que fica congelado no canto tremendo pode indicar uma socialização primária deficiente ou uma genética voltada ao medo. O ideal comportamental geralmente está no meio termo: o cão que se aproxima com curiosidade mas sem euforia desmedida.

A resposta ao toque e a contenção física é um dos testes mais reveladores que fazemos na clínica. Experimente segurar o filhote gentilmente de barriga para cima no seu colo por trinta segundos. Não force nem machuque apenas restrinja levemente os movimentos. Um cão com tendência dócil e equilibrada pode lutar um pouco no início mas logo relaxará e aceitará a submissão momentânea. Um cão com tendência a ser mais “bravo” ou reativo vai lutar freneticamente rosnar tentar morder ou entrar em pânico total sem se acalmar. Essa reação à contenção nos diz muito sobre como ele lidará com frustrações e limites quando for um adulto de vinte quilos.

Outro ponto crucial é a recuperação após sustos e estímulos sonoros inéditos. Deixe cair um molho de chaves no chão a alguns metros do filhote ou bata palmas alto uma vez. É natural que o animal se assuste; a autopreservação é instintiva. O segredo está no tempo de recuperação. O filhote “bravo” ou inseguro vai fugir e demorar muito para voltar a interagir ou vai latir compulsivamente para o objeto. O filhote equilibrado vai se assustar mas segundos depois a curiosidade vai vencer e ele vai investigar o objeto que fez o barulho. Essa plasticidade e capacidade de voltar ao estado de calma é o melhor indicativo de um temperamento dócil e estável.

A neurobiologia do comportamento canino

Para entendermos a fundo se um cão será agressivo precisamos olhar para dentro do crânio dele. O desenvolvimento do sistema límbico é o responsável direto pelas respostas emocionais. Em cães que apresentam agressividade precoce muitas vezes notamos uma hiperatividade na amígdala cerebral. Essa pequena estrutura é o alarme de incêndio do cérebro. Em um SRD equilibrado o córtex pré-frontal funciona como um gerente que avalia se o perigo é real antes de reagir. Em cães “bravos” a amígdala sequestra o cérebro antes que o gerente possa pensar resultando em reações explosivas de defesa ou ataque diante de estímulos banais como uma vassoura caindo ou uma criança correndo.

O papel dos neurotransmissores como serotonina e dopamina é fundamental na manutenção da docilidade. A serotonina atua na regulação do humor e na inibição de comportamentos impulsivos. Cães com baixos níveis de serotonina tendem a ser mais irritadiços e menos tolerantes ao toque ou à aproximação. Já a dopamina está ligada ao sistema de recompensa e aprendizado. Quando você treina seu cão e ele aprende a sentar para ganhar um petisco estamos criando caminhos neurais dopaminérgicos. Um cão que tem uma boa regulação química natural será mais fácil de treinar e consequentemente mais dócil pois entenderá a comunicação humana com mais clareza e menos estresse.

Existe uma janela crítica de neuroplasticidade que ocorre até as doze ou dezesseis semanas de vida. Nesse período o cérebro do filhote é como uma esponja ávida por conexões. Os neurônios estão fazendo sinapses em uma velocidade que nunca mais se repetirá. Se durante esse período o cão for privado de estímulos ou sofrer traumas as conexões neurais relacionadas ao medo e à desconfiança serão fortalecidas e “cimentadas”. Por outro lado experiências positivas criam uma “reserva cognitiva” de confiança. Como veterinário sempre digo que é mais fácil prevenir a agressividade nessa fase neurológica do que tentar tratar um cão adulto com caminhos neurais já rígidos e estabelecidos.

Avaliação clínica como ferramenta preditiva

Muitos tutores não percebem mas a consulta veterinária é um laboratório de comportamento riquíssimo. A resposta comportamental durante o exame físico me diz mais sobre o futuro do cão do que qualquer relato do dono. Quando coloco o estetoscópio no peito do animal ou levanto a cauda para medir a temperatura estou invadindo o espaço pessoal dele de uma forma que ele não entende. Um cão com temperamento dócil pode ficar tenso mas permite o manuseio confiando na liderança do humano presente. Um cão com potencial agressivo muitas vezes tenta redirecionar a mordida para a minha mão ou para o próprio dono demonstrando baixa tolerância ao desconforto.

A reatividade à dor e à manipulação invasiva é outro marcador importante. Claro que ninguém gosta de tomar injeção mas a reação desproporcional é um sinal de alerta. Se ao sentir a picada da vacina o filhote grita como se estivesse sendo morto e demora minutos para parar de chorar ou tenta atacar temos um indicativo de baixa resiliência. Cães que serão adultos equilibrados geralmente sentem o incômodo reagem brevemente e logo aceitam um petisco ou carinho de reconciliação. Essa capacidade de perdoar o desconforto imediato em troca de interação social é uma das características mais desejáveis em um cão de família.

A interação com o ambiente hospitalar e os odores da clínica também fornece pistas valiosas. O consultório cheira a álcool, desinfetante, feromônios de medo de outros animais e medicamentos. Um SRD confiante entra nesse ambiente explorando cheirando os cantos e abanando o rabo mesmo que com cautela. O cão que entra se arrastando que urina ao ver o jaleco branco ou que precisa ser arrastado para dentro da sala está demonstrando uma inaptidão para lidar com a novidade. Esse comportamento “bravo” por medo defensivo é na verdade o mais perigoso pois é imprevisível. Diferente do cão dominante que avisa que vai morder o cão medroso morde porque acha que vai morrer.

O papel determinante do ambiente e manejo

Você tem nas mãos o poder de moldar ou destruir o potencial genético do seu cão. A socialização ativa versus exposição passiva é um conceito que muitos confundem. Levar o cachorro para a rua e deixá-lo ver o mundo não é socializar. Socializar é criar interações positivas controladas. Se você leva seu filhote para a rua e ele é atacado por outro cão ou se assusta com um ônibus barulhento sem que você o conforte e redirecione a atenção você está fazendo uma socialização negativa. Você precisa ser o porto seguro dele mostrando que o mundo é barulhento e estranho mas que ao seu lado nada de ruim acontece. Isso transforma um potencial cão reativo em um cão observador e tranquilo.

O perigo do reforço involuntário de comportamentos é uma armadilha comum. Imagine que seu filhote rosna para uma visita porque está com medo. Você com vergonha e querendo acalmá-lo faz carinho e diz “está tudo bem, não precisa ter medo”. Na cabeça do cão você acabou de recompensar o rosnado. Você disse a ele: “Muito bem, continue rosnando que eu te dou carinho”. Com o tempo esse comportamento escala para mordidas. Para ter um cão dócil você deve ignorar comportamentos indesejados (desde que não haja perigo iminente) e recompensar profusamente os momentos de calma e sociabilidade. A docilidade se constrói mostrando ao cão o que ele ganha sendo gentil.

A construção da confiança através da rotina e previsibilidade é o melhor remédio contra a agressividade ansiosa. Cães são animais de hábitos e rituais. Um ambiente caótico onde a comida aparece em horários aleatórios e as regras mudam a cada dia gera um animal estressado. Um SRD que sabe a hora de comer de passear e de dormir tem níveis de cortisol mais baixos e consequentemente um limiar de tolerância maior. A estabilidade em casa reflete-se na estabilidade de temperamento na rua. Se você quer saber se seu cão será dócil olhe para a rotina que você oferece a ele. Um cão seguro de sua rotina raramente sente necessidade de ser agressivo.

Comparativo: SRD vs Raças com Temperamento Definido

Para facilitar sua visualização criei um quadro comparando o que esperar de um SRD em relação a duas raças puras conhecidas por extremos opostos de comportamento. Lembre-se que no SRD a variabilidade é a regra.

CaracterísticaCão SRD (Vira-lata)Pastor Alemão (Cão de Guarda/Trabalho)Golden Retriever (Companhia/Dócil)
Previsibilidade GenéticaBaixa. É uma mistura única. O comportamento pode mudar conforme o cão amadurece e diferentes genes se ativam.Alta. Selecionado para proteção, alerta e desconfiança com estranhos.Alta. Selecionado para boca macia, tolerância social e ausência de agressividade.
Nível de EnergiaVariável. Geralmente moderado a alto, dependendo do porte físico e da mistura ancestral.Muito Alto. Exige trabalho físico e mental diário para não se tornar destrutivo ou obsessivo.Alto. Energia focada em brincadeira e interação social, raramente em guarda.
Tolerância a Erros de ManejoModerada a Alta. SRDs tendem a ser resilientes e adaptáveis a falhas na educação, devido à seleção natural das ruas.Baixa. Um Pastor mal socializado pode se tornar perigoso rapidamente devido ao instinto de proteção.Muito Alta. Tolera manuseio rude e erros de treinamento sem reagir com agressividade.
Fator de AgressividadeContextual. Geralmente motivada por medo ou territorialismo se não for socializado. Raramente é agressividade predatória pura.Instintiva/Funcional. A guarda faz parte do DNA. Precisa de controle para não ser agressivo indevidamente.Mínima. A agressividade é considerada um desvio grave de temperamento na raça.
Adaptação SocialExcelente. Se bem socializado, adapta-se a qualquer ambiente ou família. É o “cão de terreno” universal.Seletiva. Tende a escolher um dono e tolerar a família, sendo desconfiado com quem vem de fora.Universal. Tende a amar todos, inclusive invasores, o que o torna péssimo para guarda.

Entender o seu SRD exige paciência e observação clínica. Não rotule seu cão como “mau” ou “santo” prematuramente. Você tem um papel ativo na construção desse temperamento. Observe os sinais biológicos respeite a neurobiologia do animal e ofereça um ambiente rico e seguro. A “loteria” genética dá as cartas iniciais mas é você quem joga a partida e define o resultado final. Conte sempre com seu veterinário para interpretar esses sinais e ajustar a rota se necessário.

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