Gripe Canina e a Tosse dos Canis: A verdade sobre a vacinação e a proteção do seu melhor amigo
A chegada dos dias mais frios ou a simples mudança brusca de temperatura costuma lotar a minha sala de espera com um perfil de paciente muito específico. O cão chega tossindo alto, fazendo um barulho seco e áspero, e o tutor entra aflito jurando que o animal engoliu um osso ou um brinquedo. Na grande maioria das vezes não há corpo estranho algum na garganta do peludo. Estamos diante da famosa Tosse dos Canis, tecnicamente chamada de Traqueobronquite Infecciosa Canina. É uma afecção respiratória altamente contagiosa que tira o sono dos donos e o sossego dos cães.
Você precisa entender que essa doença não é causada por um único agente vilão isolado. Trata-se de uma síndrome complexa onde bactérias e vírus podem atuar sozinhos ou, o que é pior, em conjunto. A bactéria Bordetella bronchiseptica é a protagonista mais famosa desse cenário, mas ela costuma vir acompanhada de vírus como o da Parainfluenza ou o Adenovírus Canino. Quando esses microrganismos resolvem fazer uma festa no sistema respiratório do seu cão, a inflamação é garantida e o desconforto é imenso.
A decisão de vacinar ou não gera muitas dúvidas nos tutores que atendo diariamente. Muitos acreditam que, por não ser uma vacina “obrigatória” por lei ou tão famosa quanto a V10 ou a de Raiva, ela pode ser deixada de lado. Meu objetivo aqui é conversar com você de forma franca, como faço dentro do consultório, explicando a biologia por trás da doença e ajudando você a decidir o melhor protocolo para a saúde do seu filho de quatro patas. Vamos mergulhar na ciência veterinária de forma descomplicada para garantir que você tome a decisão mais segura.
Entendendo a Traqueobronquite Infecciosa Canina (TIC)
A Traqueobronquite Infecciosa Canina ataca diretamente as vias aéreas superiores do animal. Imagine que a traqueia e os brônquios do seu cão são revestidos por pequenos cílios microscópicos que funcionam como vassouras, limpando as impurezas. Quando a infecção se instala, esses mecanismos de defesa são paralisados ou destruídos. A bactéria Bordetella tem uma capacidade impressionante de se aderir a esses cílios, causando uma inflamação severa que resulta naquela tosse seca e irritativa que tanto assusta.
Os vilões microscópicos não agem apenas causando tosse. A Bordetella bronchiseptica libera toxinas que paralisam o sistema imune local, abrindo as portas para infecções secundárias. É aqui que o quadro pode se complicar. Muitas vezes o cão pega primeiro um vírus respiratório, que fragiliza a barreira de proteção, e logo em seguida a bactéria se instala, aproveitando-se daquela “terra arrasada”. É uma cooperação entre patógenos que resulta em febre, letargia e muita secreção.
A sazonalidade desempenha um papel importante, mas não exclusivo. Embora chamemos popularmente de “gripe”, sugerindo que só ocorre no inverno, a transmissão acontece o ano todo. O ar seco e frio facilita a irritação das mucosas e a sobrevivência dos vírus no ambiente, mas em locais com alta densidade de cães, como parques, creches e hotéiszinhos, o risco é altíssimo mesmo no verão. A proximidade física e o compartilhamento de bebedouros são o cenário perfeito para a disseminação rápida da doença entre a matilha.
Identificando os Sinais Clínicos no seu Pet
O som da tosse da gripe canina é inconfundível para nós veterinários. Costumamos descrevê-lo como um “grasnar de ganso”. É uma tosse alta, seca e que muitas vezes termina com um movimento de ânsia de vômito. O tutor frequentemente confunde essa ânsia final com uma tentativa de expulsar algo que estaria preso na garganta. Você verá seu cão esticando o pescoço, tossindo repetidamente e expelindo uma espuminha branca no final. Essa espuma não é vômito gástrico, é apenas catarro vindo da traqueia inflamada.
É crucial diferenciar essa tosse de outros problemas mais graves. Cães pequenos, como Yorkshires e Poodles, podem ter colapso de traqueia, uma condição anatômica que também gera tosse, mas que não é infecciosa. Outra confusão comum e perigosa é com a tosse cardíaca. Cães idosos com problemas no coração podem tossir, mas geralmente é uma tosse mais úmida e que piora à noite ou quando estão deitados. Na gripe, a tosse piora com a excitação, exercício ou quando a coleira pressiona o pescoço.
Além da tosse, você deve ficar atento aos sintomas sistêmicos. Um cão com gripe pode apresentar secreção nasal, que começa transparente e pode virar um catarro esverdeado se houver contaminação bacteriana forte. A febre também pode aparecer, deixando o animal prostrado, sem vontade de comer e com os olhos caídos. Se você notar que seu cão parou de latir ou que o latido está rouco, isso indica que a inflamação já atingiu as cordas vocais, causando laringite. A observação atenta desses sinais é o primeiro passo para o sucesso do tratamento.
A Vacina contra a Gripe: Tipos e Mecanismos
A ciência veterinária evoluiu muito e hoje temos opções vacinais com tecnologias distintas. A vacina injetável é a mais tradicional. Ela é aplicada sob a pele e estimula o sistema imunológico a produzir anticorpos (IgG) que circulam no sangue. A vantagem é a facilidade de aplicação para cães que não gostam de ser manipulados no focinho. No entanto, como os anticorpos estão no sangue, eles demoram um pouco mais para chegar até a ponta do nariz e traqueia, onde a bactéria realmente ataca. Geralmente, são necessárias duas doses na primovacinação para garantir a proteção.
Já as vacinas de aplicação local, como a intranasal (gotinhas no nariz) e a oral (na bochecha), trabalham com um conceito fascinante chamado imunidade de mucosa. Elas estimulam a produção de IgA, um tipo de anticorpo que fica “sentado” na porta de entrada, ou seja, no nariz e na garganta. A resposta é muito mais rápida, muitas vezes garantindo proteção em 72 horas após uma dose única. Para o cão, isso significa que o sistema de defesa barra a entrada do microrganismo antes mesmo dele conseguir se multiplicar e causar estragos profundos.
A revacinação deve ser anual, independentemente do tipo escolhido. A imunidade contra a Bordetella não é duradoura como a imunidade contra a Parvovirose ou Cinomose. Ela cai significativamente após 12 meses. Em cães com altíssima exposição, como aqueles que frequentam creches todos os dias ou participam de competições, alguns protocolos veterinários podem até sugerir reforços semestrais, embora o anual seja o padrão ouro. A escolha da vacina deve ser debatida com seu veterinário de confiança, considerando o temperamento do animal e a urgência da proteção.
Quadro Comparativo de Vacinas contra Tosse dos Canis
| Característica | Vacina Injetável | Vacina Intranasal | Vacina Oral |
| Via de Administração | Subcutânea (Agulha) | Gotas nas narinas | Gotas na mucosa oral |
| Tipo de Proteção | Sistêmica (IgG no sangue) | Local (IgA na mucosa) | Local (IgA na mucosa) |
| Início da Proteção | Mais lento (após 2ª dose) | Rápido (após 72h-96h) | Rápido (após 72h-96h) |
| Desconforto | Picada da agulha | Espirros pós-vacinais | Menor estresse geral |
| Doses Iniciais | Geralmente 2 doses | Dose Única | Dose Única |
Afinal, a Vacina é Necessária para o seu Cão?
Essa é a pergunta de um milhão de dólares. A resposta curta é: depende do estilo de vida, mas quase sempre a resposta é sim. Se você tem um cão que vive em uma bolha, nunca sai na rua, nunca vai ao pet shop para banho e tosa e não tem contato com outros cães através do portão, o risco dele é baixo. Porém, sejamos realistas, essa não é a vida de um cão saudável e feliz. Cães são seres sociais e o convívio traz riscos que precisamos gerenciar, não evitar a qualquer custo.
A vacina se torna mandatória, do ponto de vista sanitário, para cães que frequentam ambientes coletivos. Creches, hotéis para cães e passeadores profissionais exigem a carteirinha de vacinação em dia, e com toda razão. Um único cão doente em uma creche pode infectar dezenas de outros em questão de horas através de aerossóis. Mesmo que a doença não seja fatal na maioria dos casos, o surto obriga o fechamento do local para desinfecção e causa transtorno para dezenas de famílias.
Devemos colocar na balança o custo-benefício. O tratamento de uma traqueobronquite envolve consultas, exames de sangue, Raio-X de tórax para descartar pneumonia e medicamentos por pelo menos 10 a 14 dias. O custo financeiro e o desgaste emocional de ver o animal sofrendo superam em muito o investimento anual em uma dose de vacina. Além disso, ao vacinar o seu cão, você contribui para a imunidade de rebanho, protegendo indiretamente filhotes que ainda não podem ser vacinados e cães idosos com saúde frágil.
Mitos e Verdades sobre a Imunização Respiratória
O universo da vacinação é cercado de desinformação e preciso esclarecer pontos que ouço diariamente no consultório.
A vacina impede 100% a doença?
A resposta honesta é não, e você precisa alinhar essa expectativa. Nenhuma vacina no mundo é 100% eficaz, especialmente para doenças respiratórias que possuem vários agentes causadores. O objetivo principal da vacina contra a gripe canina é evitar as formas graves da doença e a morte. Um cão vacinado pode até pegar a tosse, mas ele terá sintomas muito mais leves, uma recuperação muito mais rápida e dificilmente evoluirá para uma pneumonia. É como a nossa vacina da gripe humana: você vacina para não ir parar no hospital, não necessariamente para nunca mais espirrar.
Cães que não saem de casa precisam vacinar?
Muitos tutores acham que o apartamento no décimo andar é um bunker impenetrável. Ledo engano. Vírus podem ser carreados por fômites, ou seja, em objetos, nas suas roupas ou sapatos, embora seja menos comum na gripe do que na parvovirose. O maior risco aqui são os encontros ocasionais: a ida ao veterinário, a visita do cão do primo no natal, ou aquela escapadinha rápida no hall do prédio. Cães estritamente domiciliados tendem a ter uma imunidade “ingênua”, e quando entram em contato com o vírus, a reação pode ser pior do que a de um cão de rua calejado.
A vacina causa a própria gripe?
Esse é um medo comum, principalmente com a vacina intranasal. Como ela usa bactérias vivas atenuadas (enfraquecidas) para gerar imunidade local, é possível que o cão apresente alguns espirros ou uma tosse leve por alguns dias após a aplicação. Isso não é a doença completa, é apenas uma reação local do sistema imune trabalhando. É um sinal de que o corpo está construindo as defesas. Não confunda reação vacinal leve com a doença causada pela infecção selvagem, que é infinitamente mais agressiva e perigosa.
Complicações de uma Gripe Mal Curada
O maior erro que vejo tutores cometerem é achar que “é só uma tossinha e passa sozinho”. A anatomia canina joga contra eles nesses casos. Uma traqueobronquite não tratada ou mal curada pode permitir que as bactérias migrem das vias aéreas superiores para os pulmões. Quando isso acontece, saímos de um quadro de gripe chata para uma pneumonia bacteriana grave. O pulmão se enche de fluido e pus, a troca de oxigênio fica comprometida e o animal corre risco de vida real, necessitando muitas vezes de internação e oxigenoterapia.
Cães braquicefálicos — aqueles de focinho achatado como Pugs, Buldogues Franceses e Shih Tzus — merecem um capítulo à parte. Eles já possuem uma anatomia respiratória desfavorável, com narinas estenosadas e palato alongado. Para eles, qualquer inflamação na garganta é catastrófica. O inchaço causado pela gripe estreita ainda mais a passagem de ar que já era pequena. Um Pug com tosse dos canis sofre o dobro, tem muito mais dificuldade para respirar e entra em desconforto térmico facilmente. Para essas raças, a vacinação não é apenas recomendada, é uma questão de sobrevivência e qualidade de vida.
Precisamos falar também sobre os pacientes cardiopatas. Muitos cães idosos têm sopro no coração e já convivem com uma dinâmica circulatória delicada. A tosse intensa aumenta a pressão intratorácica e exige um esforço físico que o coração doente não aguenta. Uma simples gripe pode descompensar um cão cardíaco que estava estável há meses, levando a edema pulmonar cardiogênico. Proteger os pulmões é uma forma indireta e inteligente de proteger o coração do seu animal idoso.
Tratamento e Enfermagem Veterinária em Casa
Se o seu cão foi diagnosticado com Tosse dos Canis, o tratamento vai exigir dedicação da sua parte. Na parte medicamentosa, quase sempre prescrevemos antibióticos específicos, como a Doxiciclina, que tem ótima penetração nas vias aéreas. Anti-inflamatórios são usados para reduzir o inchaço da traqueia e aliviar a dor. O uso de xaropes antitussígenos deve ser feito com cautela e apenas sob prescrição. Em alguns momentos, precisamos que o cão tussa para expelir o catarro; inibir a tosse totalmente pode fazer com que a secreção desça para o pulmão. Nunca dê xarope humano por conta própria.
A enfermagem em casa é o que acelera a cura. A nebulização é uma grande aliada. Usar apenas soro fisiológico no inalador ajuda a umidificar as vias aéreas, fluidificar o catarro e acalmar a tosse. Recomendo fazer a inalação duas a três vezes ao dia. Outra dica de ouro é manter o animal hidratado. Se ele não quiser beber água, ofereça água de coco ou caldos naturais de carne (sem tempero, alho ou cebola). A hidratação sistêmica ajuda a tornar o muco menos espesso e mais fácil de ser eliminado.
Durante a recuperação, evite coleiras de pescoço. Use apenas peitorais para não pressionar a traqueia inflamada. O repouso deve ser absoluto. Nada de passeios longos ou brincadeiras de correr. A agitação faz o animal hiperventilar, o que resseca a garganta e desencadeia crises de tosse incontroláveis. Mantenha o animal em ambiente ventilado, mas sem correntes de vento frio. Com o tratamento correto e muito carinho, a maioria dos cães se recupera totalmente em duas semanas, prontos para voltarem a brincar, mas agora, espero, devidamente protegidos e vacinados.
Lembre-se que a prevenção é sempre mais barata e menos dolorosa que a cura. Converse com seu veterinário na próxima consulta e atualize a carteirinha do seu melhor amigo.


