Glândulas adanais: O que são e quando esvaziar
É muito comum receber no consultório tutores aflitos relatando que o cachorro começou a ter um comportamento estranho, arrastando o bumbum no tapete da sala, ou que de repente surgiu um cheiro forte e metálico, muito semelhante a peixe podre, vindo do animal. Se você já passou por isso, saiba que não está sozinho e que esse é um dos motivos mais frequentes de visitas à clínica veterinária. Estamos falando das famosas glândulas adanais, ou sacos anais, pequenas estruturas que passam despercebidas até começarem a dar problema. Como veterinário, vejo diariamente como a falta de informação correta pode transformar um desconforto simples em um problema crônico doloroso para o seu amigo.
Muitos acreditam que essas glândulas precisam ser espremidas toda semana durante o banho, mas essa prática pode estar fazendo mais mal do que bem ao seu pet. O corpo do animal foi projetado para funcionar de maneira autônoma e perfeita, e nossa interferência só deve ocorrer quando algo sai desse trilho fisiológico. Entender a anatomia e o funcionamento dessas estruturas é o primeiro passo para garantir qualidade de vida e evitar dores desnecessárias.
Neste artigo, vamos conversar de forma franca e técnica, mas fácil de entender, sobre tudo o que envolve essa região delicada. Vou explicar o que é mito, o que é verdade e qual o seu papel como tutor na prevenção de doenças. Prepare-se para entender a fundo a biologia do seu cão ou gato e descobrir como medidas simples, como o ajuste na dieta, podem evitar procedimentos cirúrgicos complexos no futuro.
O Que São e Para Que Servem as Glândulas Adanais
As glândulas adanais são dois pequenos sacos localizados sob a pele, ao redor do ânus do cão e do gato. Para você visualizar melhor, imagine o ânus do seu pet como um relógio analógico. Essas glândulas estariam posicionadas exatamente nas horas 4 e 8. Elas não são visíveis externamente em um animal saudável, pois ficam recobertas pela musculatura do esfíncter anal e pela pele, sendo palpáveis apenas por nós, profissionais, durante o exame físico. Dentro desses sacos, existem células que produzem uma secreção líquida, oleosa e de coloração que varia do amarelado ao acastanhado, com um odor extremamente pungente e característico.
A função primária dessas glândulas é a comunicação química, servindo como uma verdadeira carteira de identidade do animal no mundo olfativo. Cada vez que seu cão defeca, uma pequena quantidade desse líquido é comprimida e depositada sobre as fezes, deixando ali uma assinatura única que informa a outros animais quem passou por ali, seu sexo, estado de saúde e status reprodutivo. É por isso que os cães são tão obcecados em cheirar as fezes uns dos outros durante o passeio; eles estão, na verdade, lendo as “notícias” e identificando os vizinhos através desses marcadores químicos potentes. Além disso, quando o animal está em situação de medo extremo ou estresse, ele pode esvaziar essas glândulas involuntariamente como um mecanismo de defesa.
O processo de esvaziamento natural deve ocorrer mecanicamente durante a defecação. Quando as fezes passam pelo canal anal, elas exercem pressão de dentro para fora sobre as paredes das glândulas, forçando a saída do líquido através de pequenos ductos que desembocam na borda do ânus. Para que esse mecanismo hidráulico funcione, é essencial que as fezes tenham volume e consistência firmes. Se o animal faz fezes muito pastosas ou diarreicas com frequência, essa pressão não acontece, o líquido se acumula, fica mais espesso e começa a gerar os problemas que tanto vemos na clínica.
Identificando Problemas: Sinais que o Tutor Não Deve Ignorar
O sinal clínico mais clássico e que quase todo tutor reconhece é o ato de “esquiar”. Você verá seu pet sentado no chão, arrastando o traseiro com as patas dianteiras, tentando coçar a região no tapete, na grama ou no piso áspero. Embora muitos achem esse comportamento engraçado e façam vídeos para as redes sociais, ele é um grito de socorro do animal indicando prurido intenso, dor ou uma sensação de plenitude incômoda na região anal. Esse atrito constante pode causar feridas na pele ao redor do ânus e levar a infecções secundárias, piorando o quadro inicial.
Outro indicativo importante envolve a atenção excessiva que o animal passa a dar para a região traseira. Se você notar que seu cão ou gato para de brincar subitamente para lamber a base da cauda ou o ânus de forma compulsiva, ou se ele tenta morder a região como se estivesse caçando uma pulga invisível, desconfie das glândulas adanais. Em casos mais avançados, onde já existe dor significativa, o animal pode ter dificuldade para defecar (tenesmo), chorar ao tentar fazer as necessidades ou até mesmo evitar sentar-se, preferindo ficar em pé ou deitado de lado para não pressionar a área inflamada. Mudanças de comportamento, como irritabilidade ao ser tocado na garupa ou relutância em caminhar, também são comuns.
A inspeção visual, quando possível, pode revelar alterações físicas preocupantes. Em um quadro de inflamação ou impactação, a região ao redor do ânus pode apresentar-se inchada, avermelhada (eritematosa) e quente ao toque. Em casos onde há ruptura da glândula devido a um abscesso, você poderá notar a presença de sangue e pus misturados à secreção fétida, sujando os pelos abaixo da cauda. O odor é inconfundível: se você sentir um cheiro metálico e podre vindo do seu pet, mesmo após o banho, é hora de agendar uma consulta veterinária imediatamente, pois a infecção pode estar em curso.
A Grande Polêmica: Esvaziar ou Não Esvaziar Manualmente?
Existe uma cultura antiga e equivocada, muitas vezes perpetuada em estabelecimentos de estética animal, de que as glândulas adanais precisam ser espremidas preventivamente em todos os banhos. Como veterinário, preciso ser enfático: isso não é verdade e pode ser perigoso. O esvaziamento manual só é indicado quando o animal perdeu a capacidade de fazê-lo sozinho. Ao manipular glândulas saudáveis desnecessariamente, causamos um trauma mecânico nos tecidos delicados e nos ductos de saída. Essa inflamação provocada pela manipulação pode causar edema (inchaço), que estreita o canal de saída, dificultando o esvaziamento natural posterior e criando um problema que antes não existia.
Inicia-se então um ciclo vicioso prejudicial à saúde do seu pet. O animal vai ao banho, as glândulas são espremidas sem necessidade, a região inflama e incha, o ducto se fecha parcialmente, a secreção acumula e engrossa, o animal sente incômodo, volta ao banho e o procedimento é repetido. Com o tempo, o que era apenas um líquido fisiológico torna-se uma pasta densa e contaminada, levando à saculite crônica. Além disso, a glândula pode se tornar “preguiçosa”, perdendo o tônus muscular necessário para a expulsão natural, tornando o animal dependente desse manejo manual para o resto da vida.
A intervenção do veterinário é obrigatória apenas quando há sinais clínicos de desconforto ou alterações palpáveis durante o exame físico. Nós realizamos o esvaziamento com técnica apropriada, geralmente via retal (introduzindo o dedo protegido por luva), o que permite sentir o tamanho da glândula, a espessura da secreção e a presença de nódulos ou tumores, algo que o esvaziamento externo feito em banho e tosa não permite. Se o seu pet nunca apresentou sintomas, a melhor conduta é deixar a natureza seguir seu curso. Se os sintomas aparecerem, o tratamento deve ser médico, visando restabelecer a função normal e não apenas aliviar o sintoma momentaneamente.
A Relação Fundamental entre Alimentação e Saúde das Glândulas
A dieta é, sem dúvida, o pilar mais importante na prevenção de problemas nas glândulas adanais e muitas vezes é negligenciada. Para que o esvaziamento ocorra naturalmente, precisamos de fezes com boa estrutura, volume e firmeza. Dietas de baixa qualidade, com excesso de carboidratos simples ou ingredientes de baixa digestibilidade, muitas vezes resultam em fezes moles ou pouco volumosas. Sem o volume adequado, o bolo fecal passa pelo canal anal sem exercer a pressão lateral necessária contra as paredes das glândulas. É pura física: sem pressão, não há drenagem.
O papel das fibras na alimentação do seu pet é crucial nesse processo. As fibras insolúveis, encontradas em ingredientes como polpa de beterraba, farelo de trigo ou celulose, não são digeridas pelo organismo, mas adicionam volume às fezes e absorvem água, garantindo a consistência ideal. Ao introduzir uma dieta rica em fibras ou suplementos específicos indicados pelo veterinário, transformamos as fezes em um mecanismo natural de massagem interna. Você notará a diferença na textura das fezes e, consequentemente, na frequência com que seu animal apresenta desconforto anal. É uma solução fisiológica e não invasiva para um problema anatômico.
Por outro lado, é vital evitar alimentos que “soltam” o intestino do animal. Sobras de comida caseira gordurosa, leite e derivados (para animais intolerantes à lactose), ou petiscos industrializados de baixa qualidade podem causar episódios intermitentes de diarreia ou fezes pastosas. Mesmo que não seja uma diarreia líquida, qualquer redução na firmeza das fezes por alguns dias já é suficiente para permitir o acúmulo de secreção nas glândulas. Suplementos probióticos também são aliados poderosos, pois equilibram a microbiota intestinal, garantindo que a digestão seja eficiente e o produto final — as fezes — tenha a qualidade necessária para cumprir sua função mecânica no momento da saída.
Complicações Graves: Da Impacção à Cirurgia
Quando ignoramos os primeiros sinais de “esquiada” ou lambedura, o quadro pode evoluir rapidamente de uma simples impacção para condições muito mais graves. A impacção ocorre quando o líquido vira uma massa pastosa ou seca, impossível de sair pelo ducto estreito. Se não tratada, as bactérias presentes na região migram para dentro da glândula, causando a saculite, que é a infecção propriamente dita. Nesse estágio, o animal sente muita dor, pode ter febre e apatia. O pus se acumula sob pressão até que a parede da glândula não aguenta e se rompe para a pele, formando um abscesso fistulado. É uma ferida aberta, sanguinolenta e purulenta ao lado do ânus, que exige tratamento imediato com limpeza, antibióticos sistêmicos e analgésicos potentes.
Em casos de recorrência crônica, onde o animal tem infecções repetidas mesmo com manejo dietético e ambiental, ou em casos de tumores nas glândulas (adenocarcinomas), a indicação pode ser cirúrgica. O procedimento chama-se saculectomia, que consiste na remoção definitiva das glândulas adanais. É uma cirurgia delicada, pois a região é repleta de nervos que controlam a continência fecal. Por isso, a saculectomia nunca é a primeira opção de tratamento; ela é reservada para casos onde a qualidade de vida do animal está comprometida e as terapias conservadoras falharam. O risco de incontinência fecal, embora baixo nas mãos de cirurgiões experientes, existe e deve ser discutido.
A recuperação pós-operatória ou mesmo após o tratamento de um abscesso exige cuidados intensivos do tutor. O uso do colar elizabetano é inegociável, pois o animal não pode, em hipótese alguma, lamber a região suturada ou ferida. Higienização constante com antissépticos prescritos, compressas mornas para aliviar a inflamação e administração rigorosa da medicação são fundamentais. Como veterinário, percebo que o sucesso do tratamento depende 50% da nossa atuação na clínica e 50% da dedicação de vocês em casa, seguindo à risca as orientações de manejo e impedindo que o animal traumatize a região novamente.
Comparativo de Abordagens Preventivas e Corretivas
Para ajudar você a visualizar as opções disponíveis no mercado e na prática clínica para lidar com esse problema, preparei um quadro comparativo. Analisaremos três abordagens comuns: a mudança dietética (preventiva), o esvaziamento manual (paliativo) e a cirurgia (definitiva).
| Característica | Ração Super Premium Rica em Fibras | Esvaziamento Manual Periódico | Remoção Cirúrgica (Saculectomia) |
| Objetivo Principal | Prevenção natural através da consistência fecal. | Alívio imediato (sintomático) do acúmulo. | Resolução definitiva de problemas crônicos. |
| Invasividade | Nenhuma (ajuste nutricional). | Média (manipulação retal ou externa). | Alta (procedimento cirúrgico sob anestesia). |
| Custo a Longo Prazo | Médio (custo da ração ou suplemento). | Médio/Alto (consultas frequentes). | Alto (custo único elevado do procedimento). |
| Riscos Associados | Nenhum, apenas benefícios digestivos. | Trauma, inflamação e fibrose dos ductos. | Incontinência fecal (raro) e deiscência de pontos. |
| Indicação Ideal | Todos os animais, especialmente os com histórico. | Apenas quando há impacção diagnosticada. | Casos de tumores ou infecções recorrentes e graves. |
É fundamental que você entenda que não existe uma “bala de prata” que resolva todos os casos da mesma forma. Para um cão jovem com um episódio isolado, a correção da dieta e um único esvaziamento feito pelo veterinário podem ser suficientes para nunca mais ter o problema. Já para um cão idoso com histórico de abscessos mensais, a conversa sobre cirurgia deve ser colocada na mesa. O importante é observar seu animal. Você o conhece melhor do que ninguém. Ao primeiro sinal de que ele está desconfortável, “esquiando” ou com cheiro forte, procure ajuda profissional. Não tente resolver em casa espremendo sem técnica e evite autorizar esse procedimento em locais de estética sem supervisão veterinária. A saúde e o bem-estar do seu companheiro agradecem esse cuidado extra.


