Bicho-de-pé em cachorros: Guia completo de remoção e tratamento seguro
Olá, tutor! Tudo bem com você e com seu peludo? Se você chegou até aqui, imagino que aquela viagem deliciosa para o sítio ou para a praia no fim de semana deixou uma “lembrancinha” indesejada na patinha do seu cão. Como veterinário, atendo dezenas de casos assim toda semana, especialmente após feriados.
Aquele pontinho preto que parece inofensivo pode causar uma dor de cabeça enorme — e uma dor física real no seu bichinho. Não é apenas uma questão estética ou de higiene; estamos falando de um parasita que escava a pele e pode abrir portas para problemas muito maiores.[4]
Neste artigo, vou tirar o meu jaleco de “tecnicês” e conversar com você de igual para igual, explicando exatamente o que está acontecendo na pata do seu cachorro e como vamos resolver isso juntos, com segurança e sem sofrimento para ele.
O que é o bicho-de-pé e como ele afeta seu cão
Muitos tutores confundem o bicho-de-pé com larvas de moscas ou apenas um espinho encravado, mas a realidade é um pouco mais complexa. O vilão aqui tem nome e sobrenome: Tunga penetrans. Trata-se da menor pulga conhecida no mundo, e ela tem um hábito de vida bastante desagradável. Diferente das pulgas comuns que picam e saem, a fêmea desta espécie precisa penetrar na pele para completar seu ciclo de vida.[4]
Quando ela entra na pele do seu cachorro, ela não fica apenas na superfície. Ela se acomoda na epiderme e deixa apenas a porção posterior do corpo para fora — é aquele pontinho preto que você vê — para poder respirar e eliminar ovos. O resto do corpo dela, que fica dentro da pele, começa a inchar à medida que os ovos se desenvolvem, causando aquela pressão dolorosa que faz seu cão mancar.
É importante que você entenda que isso é uma parasitose ativa. O organismo do seu cachorro reconhece aquele corpo estranho e começa uma batalha inflamatória. O local fica quente, vermelho e pulsante. Não é algo que “sai sozinho” com facilidade; se deixada lá, a pulga morre após expelir os ovos, mas o corpo dela causa uma infecção necrótica que pode demorar semanas para ser expulsa pelo organismo.
A diferença crucial entre pulga comum e bicho-de-pé
A confusão é comum, mas a distinção é vital para o tratamento. A pulga comum (Ctenocephalides sp.) corre pelo corpo do animal, pica, suga o sangue e desce para o ambiente. Ela causa coceira generalizada, dermatite alérgica e se espalha por todo o corpo. O tratamento foca em matar as pulgas adultas que estão “passeando” sobre a pelagem.
Já o bicho-de-pé é estático. Uma vez que a fêmea penetra, ela não sai mais do lugar. Ela perde as patas e se torna um parasita fixo. Isso significa que xampus antipulgas comuns têm pouco efeito imediato sobre ela, pois ela está “blindada” dentro da pele do animal. O foco do problema é localizado, geralmente nas patas, focinho ou escroto.
Saber essa diferença muda a nossa abordagem clínica. Enquanto para pulgas comuns prescrevemos banhos e pipetas, para a tungíase (o nome técnico da doença do bicho-de-pé), a abordagem é quase cirúrgica. Precisamos remover o parasita fisicamente, pois apenas matá-lo lá dentro pode gerar um abcesso ou uma infecção secundária grave.
Como ocorre a transmissão e invasão
Você deve estar se perguntando: “Onde meu cachorro pegou isso?”. A resposta quase sempre está no solo. O bicho-de-pé não pula de um cachorro para o outro como as pulgas comuns costumam fazer. A transmissão é ambiental. Os ovos caem no chão, viram larvas, pupas e depois adultos que ficam no solo esperando um hospedeiro passar.
Os locais favoritos desses parasitas são solos secos, arenosos e sombreados. Currais, chiqueiros, praias com pouca movimentação de maré e quintais de terra batida são “resorts” para a Tunga penetrans. Quando seu cão pisa nesse solo, a fêmea, que é minúscula (cerca de 1mm antes de penetrar), aproveita a pele mais fina dos coxins (as almofadinhas da pata) ou o espaço entre os dedos para entrar.
A penetração é rápida e, muitas vezes, indolor no início. O cão pode sentir apenas uma leve picada. É por isso que muitos tutores só percebem o problema dias depois, quando a pulga já aumentou de tamanho (podendo chegar ao tamanho de uma ervilha) e a inflamação já está instalada. A prevenção, portanto, envolve muito mais olhar onde seu cão pisa do que apenas com quem ele brinca.
Identificando os sinais clínicos e sintomas
O diagnóstico precoce é o melhor amigo do seu cachorro nesse momento. Quanto antes identificarmos a invasão, menor será a lesão e o risco de infecção. O primeiro sinal é quase sempre comportamental. Você vai notar que seu cão começa a lamber obsessivamente uma pata específica ou evita apoiar o membro no chão ao caminhar.
Essa lambedura constante não é apenas coceira; é uma tentativa desesperada de aliviar a dor e remover o “intruso”. Em casos mais avançados, o cão pode ficar apático, perder o apetite devido à dor ou até apresentar febre se houver infecção bacteriana associada. Se você tentar tocar na pata e ele chorar ou puxar o membro bruscamente, é um sinal de alerta vermelho de dor aguda.
O aspecto visual da lesão
Ao examinar a pata (faça isso com cuidado e em um local bem iluminado), procure entre os dedos e nas almofadinhas. A lesão clássica se parece com um nódulo pálido, branco ou amarelado, com um ponto escuro bem no centro. Esse ponto preto é o ânus e o poro respiratório da pulga.
Ao redor desse nódulo, a pele costuma estar avermelhada e inchada. Em infestações maciças, a pata pode parecer um “queijo suíço”, com múltiplos nódulos aglomerados, deformando a anatomia dos dedos. Às vezes, a pele ao redor já está descamando ou com crostas devido à lambedura excessiva.
Se você notar pus saindo ao redor do ponto preto, ou se a região estiver com um cheiro forte e desagradável, significa que já existe contaminação bacteriana. Nesses casos, a urgência veterinária é ainda maior, pois a infecção pode se espalhar para os tendões e ossos da pata.
A dor e a inflamação local (Pododermatite)
Não subestime o desconforto do seu animal. A presença do bicho-de-pé causa uma pododermatite, que é a inflamação da pele da pata. Imagine ter uma pedra pontiaguda dentro do seu sapato, mas essa pedra está, na verdade, dentro da sua pele e crescendo dia após dia. É essa a sensação que seu cão experimenta a cada passo.
A inflamação libera mediadores químicos que aumentam a sensibilidade da região. O simples ato de caminhar no piso frio ou na grama pode se tornar insuportável. Cães menores sofrem ainda mais proporcionalmente.
Além disso, a inflamação crônica pode levar ao espessamento da pele (hiperqueratose), fazendo com que a pata perca sua elasticidade natural. Isso atrapalha a pisada do animal e pode causar problemas ortopédicos secundários, já que ele começa a andar “torto” para compensar a dor, sobrecarregando a coluna ou outras articulações.
O passo a passo da remoção segura (A Realidade Clínica)
Aqui entramos no ponto mais delicado deste artigo. Sei que a vontade de pegar uma agulha e resolver o problema em casa é grande, mas preciso ser honesto com você sobre os riscos. A remoção do bicho-de-pé é um procedimento cirúrgico menor. Na clínica, seguimos protocolos rígidos que são difíceis de replicar na mesa da sua cozinha.
O “padrão ouro” é a remoção feita por um médico veterinário. Por quê? Porque muitas vezes precisamos sedar o animal. A região é extremamente sensível e dolorosa. Tentar cutucar uma ferida inflamada em um animal acordado e com dor é receita para uma mordida (reação de defesa) ou para traumatizar ainda mais a pata do cão, empurrando bactérias para dentro da corrente sanguínea.
A técnica asséptica e materiais
Quando realizamos o procedimento, começamos com uma limpeza profunda da pata com soluções antissépticas (como clorexidina degermante). Usamos luvas estéreis, lâminas de bisturi ou agulhas descartáveis de calibre específico para alargar o poro sem dilacerar a pele.
O objetivo é remover a pulga inteira, intacta. Se a bolsa de ovos romper lá dentro durante a extração, o corpo do animal reage violentamente aos restos do parasita, criando um granuloma (uma massa de tecido inflamatório) que demora muito para curar. Após a remoção, lavamos a cavidade que ficou (o “buraquinho”) com soro fisiológico e aplicamos pomadas antibióticas diretamente no local.
O que você JAMAIS deve fazer em casa
Nunca, em hipótese alguma, esprema o nódulo como se fosse uma espinha. Ao fazer isso, você rompe o corpo da pulga dentro da pele do seu cachorro. Isso libera ovos, fezes e fluidos internos do parasita diretamente na corrente sanguínea e nos tecidos do seu pet, causando uma infecção grave.
Também evite usar agulhas de costura queimadas no fogo (elas não são estéreis de verdade e contêm resíduos de carbono), espinhos de laranjeira ou facas de cozinha. O risco de introduzir o vírus do tétano ou bactérias agressivas com esses instrumentos é altíssimo. Se você não tem como ir ao veterinário imediatamente, é melhor aplicar um antisséptico tópico e proteger a pata até a consulta do que tentar uma “cirurgia caseira”.
Tratamento medicamentoso e cuidados pós-remoção
Tirar o bicho-de-pé é apenas metade da batalha. O tratamento continua nos dias seguintes para garantir que a pele cicatrize e que não surjam infecções oportunistas. O buraco deixado pela pulga é uma porta aberta para bactérias, e precisamos fechá-la rapidamente.
O uso de sprays cicatrizantes e repelentes é fundamental. Produtos à base de prata, rifamicina ou sprays veterinários específicos (os famosos “mata-bicheiras” ou cicatrizantes roxos/prateados) ajudam a criar uma barreira física e química. Eles devem ser aplicados 2 a 3 vezes ao dia, sempre após limpar a pata com água e sabão neutro e secar bem.
Antiparasitários orais como aliados
Hoje em dia, temos uma arma poderosa: os comprimidos antiparasitários da classe das isoxazolinas. Embora a indicação principal seja para pulgas e carrapatos, muitos desses medicamentos têm eficácia sistêmica que ajuda a matar a Tunga penetrans.
Quando o cão ingere o comprimido, o medicamento circula no sangue. Ao se alimentar, a pulga ingere o veneno e morre. Isso é excelente para casos de infestação massiva, onde a remoção manual de todas as pulgas seria traumática demais. A pulga morre, seca e o corpo do animal a expulsa naturalmente junto com a renovação da pele ao longo dos dias, facilitando o processo.
Antibióticos e anti-inflamatórios sistêmicos
Em casos onde já existe pus, inchaço severo ou febre, o veterinário irá prescrever antibióticos orais. Não dê antibióticos “que sobraram na gaveta” por conta própria; a dosagem para cães é muito específica e o tipo de bactéria da pele exige antibióticos corretos (geralmente cefalosporinas ou penicilinas).
Anti-inflamatórios não esteroidais também são frequentemente prescritos por 3 a 5 dias para aliviar a dor e o edema, permitindo que seu cão volte a caminhar com conforto mais rapidamente. O conforto do paciente é prioridade na recuperação.
O ciclo biológico do parasita e o perigo no solo
Para vencer o inimigo, você precisa conhecer a rotina dele. O ciclo da Tunga penetrans dura cerca de 3 a 4 semanas. A fêmea que está na pata do seu cão expele centenas de ovos por dia no ambiente. Esses ovos são microscópicos e caem onde quer que o cão ande.
Em poucos dias (3 a 4), as larvas eclodem. Elas se alimentam de matéria orgânica (restos de pele, fezes, folhas secas) presente na poeira ou areia. Diferente das larvas de pulga comum, elas não sobem em tapetes ou sofás; elas precisam de solo solto. Por isso, apartamentos são ambientes ruins para elas, mas quintais de terra são perfeitos.
Por que solos arenosos são os vilões
A larva precisa se enterrar para virar pupa e se transformar em adulto. Solos compactados ou cimento não permitem isso. A areia, a terra fofa do jardim ou o chão batido do sítio oferecem a proteção ideal contra o sol forte e a dessecação.
Se você tem um canil com piso de terra ou areia, este é o foco. Apenas tratar o cachorro e devolvê-lo para esse ambiente é enxugar gelo. Ele será reinfestado em questão de horas. O controle ambiental é 90% do sucesso no combate ao bicho-de-pé.
A reinfestação: Um ciclo vicioso
O adulto recém-saído da pupa é muito ágil e faminto. Se houver um cão (ou um humano, ou um gato, ou um porco) por perto, a fêmea vai copular e procurar penetrar a pele imediatamente. Se não houver hospedeiro, ela pode sobreviver no ambiente por semanas esperando uma oportunidade.
Isso explica por que, às vezes, você vai para uma casa de praia que estava fechada há meses e, mesmo assim, seu cão volta cheio de bicho-de-pé. As pupas estavam lá, em latência, esperando a vibração dos passos para eclodirem e atacarem.
Complicações severas e riscos ocultos
Quero que você leve este tópico muito a sério. O bicho-de-pé é frequentemente negligenciado como algo “simples”, mas ele mata. A complicação mais temida é o Tétano. A bactéria Clostridium tetani vive exatamente no mesmo ambiente que o bicho-de-pé (terra, esterco, ferrugem) e adora feridas profundas e sem oxigênio — exatamente o tipo de lesão que a tunga cria.
Cães são relativamente resistentes ao tétano comparados aos cavalos e humanos, mas quando pegam, é gravíssimo. A rigidez muscular, o “riso sardônico” (repuxamento da face) e a paralisia respiratória são sintomas terríveis. A profilaxia do bicho-de-pé é, indiretamente, a profilaxia do tétano.
Miíases e infecções bacterianas secundárias
Outro risco comum no Brasil é a miíase, a famosa “bicheira”. A lesão aberta e com secreção atrai moscas varejeiras. Se uma mosca pousar na ferida do bicho-de-pé e colocar ovos, as larvas da mosca vão comer o tecido vivo da pata do seu cão, causando um estrago enorme e doloroso.
Além disso, bactérias estafilococos podem entrar na corrente sanguínea e causar septicemia (infecção generalizada), que pode levar à falência de órgãos e morte, especialmente em filhotes ou cães idosos com imunidade baixa.
Necrose e perda de estruturas
Em casos crônicos onde o tutor demora a buscar ajuda, a inflamação pode cortar o suprimento de sangue para a ponta do dedo ou para a unha. Isso causa necrose (morte do tecido).
Já tive que amputar dedos de cães porque a infestação de bichos-de-pé foi tão severa que destruiu os ligamentos e o osso da falange, tornando o dedo irrecuperável. Não deixe chegar a esse ponto.
Prevenção e controle ambiental eficiente
A melhor forma de remover o bicho-de-pé é garantir que ele nunca entre. Se você mora em área de risco ou frequenta sítios, a higiene do local é imperativa. Varra diariamente as áreas de terra batida para remover matéria orgânica.
Se possível, cimentar ou colocar piso lavável nas áreas onde o cão dorme e passa a maior parte do tempo reduz drasticamente a infestação. A luz solar direta também mata as larvas, então podar árvores para deixar o sol bater na terra ajuda.
Produtos químicos para o ambiente
Em casos de infestações pesadas, pode ser necessário tratar o solo. Existem inseticidas em pó ou líquidos específicos para pulverização de quintais que matam as larvas e pulgas adultas. Consulte um veterinário para saber qual produto é seguro para usar em casas com pets (geralmente produtos à base de piretróides, mas cuidado com gatos, que são sensíveis).
O uso de “vassoura de fogo” (lança-chamas a gás) em canis de chão batido é uma técnica antiga e muito eficaz usada em fazendas para matar ovos e larvas no solo, mas exige cuidado extremo no manuseio.
Cuidados em passeios em áreas de risco
Vai viajar para o sítio? Prepare seu cão antes. O uso de sapatos ou botinhas de neoprene para cães pode parecer “frescura”, mas é a proteção física mais eficaz se o cão aceitar usar.
Além disso, verifique as patas do seu cão diariamente durante a viagem. Remover um bicho-de-pé que acabou de entrar (ainda pequeno e plano) é infinitamente mais fácil e menos doloroso do que remover um que já está inchado há uma semana.
Comparativo de Soluções Antiparasitárias e Tratamento
Aqui fiz um quadro comparativo para te ajudar a escolher a melhor proteção. Embora a remoção seja mecânica, esses produtos são essenciais para evitar novas infestações ou tratar o ambiente.
| Característica | Simparic / NexGard / Bravecto (Comprimidos) | Spray Cicatrizante (ex: Bactrovet/Rifocina) | Coleira Repelente (ex: Seresto/Leevre) |
| Função Principal | Matar o parasita após picar/penetrar. | Tratar a ferida e evitar infecções/bicheiras. | Repelir o parasita antes que ele suba. |
| Ação no Bicho-de-pé | Alta. Mata a tunga, fazendo ela secar e ser expulsa. | Nula na morte do parasita, mas essencial pós-remoção. | Moderada. Ajuda a repelir, mas em áreas muito infestadas pode falhar. |
| Duração | 30 a 90 dias (dependendo da marca). | Ação imediata (requer reaplicação diária). | 4 a 8 meses. |
| Praticidade | Excelente (um petisco). | Trabalhosa (suja a pata, o cão pode lamber). | Boa (basta colocar no pescoço). |
| Indicação Veterinária | Para tratamento de infestações e prevenção sistêmica. | Obrigatório após a remoção mecânica. | Melhor como prevenção coadjuvante em viagens. |
Lembre-se: nenhum artigo substitui a avaliação presencial do seu médico veterinário. Se a patinha do seu amigo está feia, inchada ou se você não sente segurança para manusear, corra para a clínica. A saúde do seu cão vale muito!


