Recebo frequentemente no consultório tutores exaustos, segurando uma guia roída em uma mão e uma foto de um sofá despedaçado na outra. Você provavelmente chegou aqui porque aquele filhote adorável de Labrador, que parecia um anjo nas fotos do canil, transformou sua sala em um cenário de guerra. Quero tranquilizar você de imediato afirmando que esse comportamento, embora frustrante e caro, é biologicamente esperado para a raça e para a idade.
Como veterinário, preciso que você entenda que não estamos lidando com um cão “mau” ou “vingativo”. Estamos lidando com um animal que possui uma programação genética específica para usar a boca, somada a um nível de energia projetado para caça e trabalho pesado. O seu Labrador não destrói seus sapatos porque ele odeia você, mas porque ele tem necessidades fisiológicas e mentais que, neste momento, não estão sendo supridas da maneira que a biologia dele exige.
Neste guia, vamos conversar de igual para igual. Vou tirar o jaleco branco da formalidade excessiva e explicar exatamente o que acontece dentro da cabeça e do corpo do seu cachorro. Vamos abordar desde a troca dos dentes até questões gástricas que podem motivar a destruição, passando por estratégias que uso com meus próprios pacientes para salvar a mobília e, principalmente, a saúde do animal.
Entendendo a Boca Nervosa do Labrador
A primeira coisa que você precisa compreender é a origem da raça do seu cão. O Labrador é um “Retriever”, um cão recuperador de caça. Isso significa que, por gerações, eles foram selecionados geneticamente para trabalhar em parceria com humanos, buscando objetos (originalmente aves abatidas) e trazendo-os na boca. A boca é a ferramenta de trabalho principal dessa raça. Para um Labrador, pegar coisas, carregar objetos e sentir texturas com os dentes é tão natural quanto respirar é para nós. Quando reprimimos totalmente o uso da boca, estamos lutando contra a genética do animal, o que gera frustração e redirecionamento para o pé da sua mesa.
Além do fator genético, temos a questão fisiológica aguda da fase de filhote. Até os seis ou sete meses de idade, seu cão passará pela troca de dentição. Os dentes decíduos, ou dentes de leite, caem para dar lugar aos permanentes. Esse processo inflama a gengiva, causa coceira, dor e um desconforto constante. O ato de roer funciona como uma massagem gengival que alivia essa dor física. Se você não fornecer o “analgésico” correto na forma de itens apropriados, ele buscará alívio no rodapé da parede ou no controle remoto da televisão.
É fundamental diferenciar a exploração da destruição proposital. O filhote conhece o mundo pela boca, da mesma forma que um bebê humano leva tudo à boca. Ele está testando a dureza, a textura e o sabor dos objetos. Na mente do filhote, ele não está destruindo; ele está investigando o ambiente. A destruição é apenas a consequência física dessa investigação feita com dentes afiados. Entender essa nuance muda a sua postura de “meu cachorro é um vândalo” para “meu cachorro é um explorador sem ferramentas adequadas”.
Enriquecimento Ambiental na Prática Clínica
A solução padrão que muitos tutores tentam é comprar um ossinho de couro no pet shop e esperar que isso resolva. Na medicina veterinária moderna, sabemos que isso é insuficiente. Precisamos falar sobre enriquecimento alimentar. Na natureza, nenhum canídeo recebe a comida de graça em um pote de cerâmica. Eles caçam, forrageiam e trabalham pelo alimento. Eu recomendo fortemente que você abula o pote de comida tradicional. Toda a ração do seu filhote deve ser oferecida dentro de brinquedos recheáveis, garrafas pet com furos ou tapetes de lamber. Quando o cão gasta 40 minutos para comer a refeição lambendo e roendo um dispositivo, ele gasta energia mental e satisfaz a necessidade oral.
A escolha dos brinquedos de roer também é uma questão de saúde. Vejo muitos casos de fraturas dentárias em pré-molares de cães que roem ossos naturais muito duros ou chifres de cervo sem supervisão. Por outro lado, brinquedos muito moles são engolidos e causam obstrução. O ideal para o Labrador são brinquedos de borracha maciça, atóxica, que cedem levemente à pressão do dente, mas não se partem. Esses brinquedos devem ter tamanhos adequados para que não possam ser engolidos inteiros, um risco real para essa raça que tem uma “boca de jacaré” e um esôfago complacente.
Tenho uma ressalva importante sobre pelúcias e cordas. Para um Labrador destruidor, esses itens não são brinquedos, são perigos cirúrgicos. As cordas desciam e os fios podem causar o que chamamos de “corpo estranho linear” no intestino, uma condição gravíssima que “sanfona” o intestino e pode levar a necrose. As pelúcias contêm enchimento e apitos que são frequentemente ingeridos. Na minha rotina clínica, se o cão tem perfil destruidor, proíbo terminantemente o acesso livre a panos, cordas e pelúcias. Deixe esses itens apenas para brincadeiras de cabo de guerra onde você e o cão estão segurando o objeto juntos.
Gerenciamento de Energia e Rotina
Muitos tutores acreditam que a solução para a destruição é fazer o cachorro correr até cair. Embora o exercício físico seja vital, o excesso de estímulo físico sem trabalho mental pode criar um “atleta do caos”. O Labrador tem uma resistência física absurda. Se você apenas caminhar ou correr com ele, ele vai ganhar condicionamento físico e precisará de cada vez mais exercício para cansar. O segredo para acalmar a boca nervosa é o cansaço mental. Quinze minutos de treino de obediência, onde ele precisa pensar para ganhar a recompensa, cansam mais do que uma hora de caminhada desregrada.
Falando em exercícios físicos, precisamos ter cautela com as articulações do seu filhote. O Labrador é uma raça predisposta à displasia coxofemoral e de cotovelo. Exercícios de alto impacto, como pular para pegar frisbee, correr em escadas ou pisos lisos, podem lesionar a cartilagem em formação. Prefira caminhadas estruturadas, onde o foco é cheirar o ambiente (o olfato é um grande dreno de energia) e socializar, em vez de corridas frenéticas. A natação é uma excelente alternativa, pois gasta muita energia sem impacto articular, mas deve ser introduzida com cuidado e supervisão.
Um ponto frequentemente ignorado é o sono. Filhotes, assim como crianças humanas, ficam irritadiços e hiperativos quando estão com sono excessivo. Um filhote de 3 a 6 meses precisa dormir cerca de 18 horas por dia. Muitas vezes, aquele momento de loucura em que ele começa a morder sua calça e correr pela casa derrubando tudo é um sinal de que ele “passou do ponto”. Estabelecer uma rotina de sonecas forçadas, em um local calmo e escuro, ajuda a “resetar” o cérebro do cão e diminui a incidência de comportamentos destrutivos causados por superestimulação.
A Estratégia da Gestão de Ambiente
Você não pode educar o que você não vê. Esse é um mantra que uso na clínica. Deixar um filhote de Labrador solto pela casa sem supervisão é a receita para a ingestão de corpos estranhos e destruição. A gestão de ambiente envolve restringir o acesso do cão às áreas onde ele pode errar. O uso de portões de bebê para limitar o cão a um cômodo seguro (onde não há tapetes caros ou fios elétricos) é essencial. Não é crueldade limitar o espaço; é segurança. Pense nisso como colocar um bebê num chiqueirinho para que ele não coloque o dedo na tomada.
A caixa de transporte ou o cercadinho, se introduzidos positivamente, tornam-se o “quarto” do cachorro. É o local onde ele descansa e se sente seguro. Jamais use esses locais como punição. Eles devem ser associados a coisas boas, como os brinquedos recheados de comida que mencionamos antes. Quando você não puder supervisionar o filhote 100% — por exemplo, quando for tomar banho ou cozinhar — ele deve estar na área de segurança dele. Isso impede que o hábito de roer móveis se estabeleça. Cada vez que ele rói o sofá e você não vê, o comportamento é “auto-recompensador” porque é prazeroso para ele.
A supervisão ativa permite que você atue no momento exato. Se você vê o cão indo em direção ao pé da mesa, você pode interceptar antes da mordida. Não adianta gritar “NÃO” cinco minutos depois que ele já roeu. Cães associam a correção ao que estão fazendo no exato segundo. Se você chega em casa e briga com ele pelo lixo revirado horas atrás, ele pode achar que está levando bronca por ter vindo te cumprimentar na porta. O foco deve ser o redirecionamento: interrompa o comportamento indesejado e ofereça imediatamente o item correto (o brinquedo dele), festejando muito quando ele aceitar a troca.
Identificando Problemas de Saúde Ocultos
Como veterinário, é meu dever alertar que nem toda destruição é comportamental. Existe uma condição chamada Pica (ou alotriofagia), que é o apetite depravado por itens não alimentares. Se o seu Labrador não apenas destrói, mas engole pedras, pedaços de parede (reboco), terra ou plástico, precisamos investigar a fundo. Isso pode ser sinal de deficiências minerais, anemia ou problemas de absorção intestinal. Um hemograma completo e exames de fezes são os primeiros passos para descartar causas fisiológicas para essa “fome” de objetos.
Parasitoses intestinais, como a Giardia ou verminoses comuns, podem causar um desconforto abdominal crônico. O animal, sem saber como lidar com a dor de barriga ou a náusea, pode começar a lamber superfícies frias (chão, paredes) ou roer objetos como uma forma de aliviar o desconforto visceral. Já atendi casos de cães rotulados como “destruidores compulsivos” que, na verdade, tinham uma gastrite crônica severa. Tratando o estômago, o comportamento de destruir cessou quase que imediatamente.
A dor também altera o temperamento. Um filhote pode estar com dor no ouvido (otite) ou dor articular precoce e reagir a isso ficando mais agitado e destrutivo. A destruição funciona como uma válvula de escape para o estresse causado pela dor. Por isso, antes de contratar um adestrador, o check-up veterinário é obrigatório. Precisamos garantir que a máquina biológica esteja funcionando perfeitamente antes de tentar ajustar o software comportamental. Se o seu cão apresenta salivação excessiva, vômitos esporádicos ou fezes pastosas junto com a destruição, corra para o consultório.
Diferenciando Ansiedade de Separação de Tédio
Um ponto crucial no diagnóstico da destruição é o “quando”. Se o seu Labrador destrói a casa apenas quando você sai, podemos estar diante de um quadro de Ansiedade de Separação. O tédio acontece a qualquer momento: você está na sala vendo TV e ele está roendo o tapete porque não tem nada melhor para fazer. A ansiedade de separação é um pânico real desencadeado pelo seu afastamento. Cães com essa síndrome frequentemente destroem as saídas (portas, janelas, batentes) na tentativa desesperada de ir atrás do tutor.
Os sinais clínicos da ansiedade vão além da destruição. Geralmente, o cão vocaliza (uiva, late) incessantemente, pode urinar ou defecar em locais inapropriados (mesmo sendo educado) e apresenta salivação excessiva, chegando a deixar poças de baba. Se o seu cão apresenta esses sinais, a abordagem de “dar brinquedo” não resolverá sozinha. Muitas vezes, precisaremos de suporte medicamentoso (ansiolíticos prescritos pelo veterinário) em conjunto com terapia comportamental para ensinar o cão a ficar sozinho gradualmente.
Se for diagnosticada a ansiedade, o protocolo de dessensibilização é lento. Envolve simular saídas falsas (pegar a chave e não sair, colocar o sapato e sentar no sofá) para que esses gatilhos percam o poder de prever sua partida. Para o Labrador que destrói apenas por tédio (a maioria dos casos), aumentar o desafio mental e físico antes de você sair de casa costuma resolver. Deixar um “Quebra-cabeça” de comida congelada quando você sai transforma o momento da sua partida em algo positivo (“oba, ele saiu, agora ganho meu super prêmio”) em vez de um momento de solidão.
Comparativo de Produtos Similares
Para ajudar você a visualizar onde o Labrador se encaixa no espectro de “destruição e energia” em comparação com outras raças populares que atendo, preparei este quadro comparativo. Isso ajuda a alinhar suas expectativas.
| Característica | Labrador Retriever | Golden Retriever | Beagle |
| Nível de Energia (Filhote) | Altíssimo. Explosivo e físico. | Alto. Mas tende a ter picos mais curtos. | Alto. Muito focado em olfato e teimosia. |
| Estilo de Destruição | Boca Forte: Rói madeira, paredes, móveis pesados. Engole objetos grandes. | Boca Macia: Carrega objetos, rasga tecidos e papéis. Menor tendência a roer parede. | Escavador/Rastreador: Destrói lixo, revira armários de comida, uiva. |
| Motivação Principal | Necessidade oral intensa + Tédio físico. | Necessidade de interação social + Tédio. | Fome insaciável + Cheiros interessantes. |
| Facilidade de Treino | Alta. Faz tudo por comida. | Alta. Faz tudo para agradar o dono. | Média/Baixa. Se distrai fácil com cheiros. |
| Risco de Ingestão (Corpo Estranho) | Crítico. Engole meias, pedras, brinquedos inteiros. | Moderado. Gosta de carregar, mas engole menos que o Lab. | Moderado a Alto. Focado em restos de comida e lixo. |
O Labrador é, sem dúvida, o campeão na categoria “boca nervosa”. Enquanto o Golden pode ficar feliz segurando uma pelúcia na boca, o Labrador tende a dissecá-la. Enquanto o Beagle vai destruir a porta do armário para roubar o pacote de pão, o Labrador vai roer o pé da mesa porque a textura da madeira é agradável para sua gengiva.
Lidar com a fase de filhote dessa raça exige paciência, humor e, acima de tudo, proatividade. Você precisa estar um passo à frente do cão. Prepare a casa, ajuste a rotina de exercícios, enriqueça a alimentação e mantenha o acompanhamento veterinário em dia. A boa notícia é que essa fase passa. Com o manejo correto, aquele “crocodilo” peludo se tornará o cão companheiro, leal e equilibrado que fez a raça ser a mais popular do mundo por tanto tempo. Respire fundo, esconda seus sapatos favoritos e comece o treino hoje mesmo.


